<em>Sala 3</em> e <em>Os Corrécios</em>
A polémica ideológica e estética que opôs aqueles que defendiam uma literatura que expressasse o vivo pulsar de uma sociedade e a sua passagem para um devir mais progressivo e justo, a quantos pugnavam por uma literatura subjectivista e alheada do real quotidiano (para usar um título feliz de José Gomes Ferreira), não se esbateu com o final do século XX e, bem pelo contrário, se torna ainda hoje, sobretudo perante o panorama a derruir de um território assaltado pelos mais abjectos produtos ditos literários, mais premente e da ordem da urgente reflexão.
Hoje, a questão já não se porá tanto na definição de arte literária - se uma literatura que assume interpretar criticamente as derivas do tempo histórico sobre o qual escreve, é um mero produto de acção política (e aqui caberia afirmar, como de resto o demonstrou lúcido e definitivo Alexandre Pinheiro Torres, que toda a literatura é política, mesmo a que, sorrateiramente, nos tentam impingir como inócua) e a outra que ouve, arrebatada, chilrear de pássaros nos umbrais, se olha ao espelho dos delírios pasmados, com as palavras debruçadas sobre abismos de abstracções elementares, aguardando a pena salvadora de Prado Coelho nas páginas de "O Público", ou se passeia, meteórica e convencida, pelas camas de cetim do jet set luso, incontinente de língua e aos baldões na gramática, numa promiscuidade formal desbragada e espertota, é obra de arte ou mero produto de supermercado para evasões do real - não sejamos ingénuos.
O conceito de arte pela arte que os presencistas acenavam como arma de combate à literatura comprometida dos neo-realistas e que Robbe Grillet actualizou opondo a sua teoria do regresso romântico da inconsciência do acto criador, como refere Werner Krauss, ao engagement sartreano, não passou de um sofisma para tentar impedir que uma literatura virada para os problemas reais e para as lutas do povo, efectivamente se afirmasse. Julgo que o enquadramento teorizante do nouveau roman se mantém ainda hoje, adaptado às derivas do tempo, caucionando o aparecimento dos subprodutos literários que a pósmodernidade contribuiu para legitimar.
Alheia aos bastidores das tricas literárias caseiras, a obra de Manuel Tiago revela-se logo após a revolução de Abril de 74, com "Até Amanhã, Camaradas" e determina-se, desde logo, território pessoalíssimo e singular no panorama literário português dos anos 70, a fazer-se no dealbar do estruturalismo, de uma mal digerida abstractização a roçar as fraldas de um surrealismo serôdio, com algumas vozes centrais de uma 3a. geração neo-realista que a denúncia ficcional da guerra colonial tornava visível e actuante: Álvaro Guerra, Modesto Navarro, Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre, José Martins Garcia, José Manuel Mendes, João de Melo, etc., mas igualmente com algumas figuras tutelares da prosa e da poesia, igualmente do combate antifascista, como José Cardoso Pires, Carlos de Oliveira, Augusto Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira ou José Saramago, já com as crónicas e a poesia publicados e trazendo à ilharga "A Noite" e o "Manual de Pintura e Caligrafia".
Uma voz descomplexada
Manuel Tiago surge, assim, como uma voz descomplexada face às estéticas e às polémicas academizantes da moda, com uma escrita clara e despojada, de cariz vincadamente anti-burguês, política e partidariamente comprometida, afirmando-se livre e liberta dos constrangimentos que a censura impunha aos autores neorealistas, obrigando-os a um discurso circular, subterrâneo e codificado. Ou seja, Manuel Tiago diz transparente o que os primeiros neo-realistas eram forçados a dizer cifrado. Esta atitude de assunção livre do real - que podemos detectar, igualmente, no magnífico romance de José Casanova "O Caminho das Aves" - é, em literatura, do plano da modernidade. De resto, é nas premissas estéticas e filosóficas do neo-realismo que a melhor prosa de Manuel Tiago se inscreve e radica.
Temos assim, um discurso que não escamoteia o real, que não esconde as suas origens, que se assume como contributo no combate ao fascismo e em oposição frontal ao capitalismo rapace emergente, que as debilidades e os desvios do processo democrático permitiram domínio do sistema económico.
Os contos que constituem o volume de "Sala 3", são, tal como "Até Amanhã, Camaradas", narrativas da pré-revolução, como refere Manuel Gusmão. Neles Manuel Tiago traça o quadro negro do Portugal fascista e das condições quase sub-humanas em que o povo sobrevivia. O conto que dá título ao volume narra-nos a história de vários militantes comunistas presos no Aljube (o autor nunca refere
claramente o nome do presídio, embora nos forneça pistas, como o dos pombos que vêm ou do Rossio, ou das Ruínas do Convento do Carmo) e a acção decorre nos primeiros anos da 2.ª Guerra Mundial. A fuga do Aljube é-nos contada com minúcia, nos mais ínfimos pormenores, desde a preparação do golpe, passando pelas traições dos infiltrados, a luta travada dentro do cativeiro contra as condições de opressão extrema a que os presos estavam sujeitos, até aos truques que os prodígios da imaginação congeminavam para passar e receber mensagens. "Sala 3" é, no seu realismo depurado, apelando à razão mais do que pretendendo estabelecer um discurso propício à emotividade (embora um forte sentimento de revolta e impotente raiva ainda hoje nos assalte ao ler este texto), um conto exemplar.
Manuel Tiago conhece bem os seus interlocutores, sabe que quem o lê estará próximo das suas convicções e por essa determinante da criação literária (o destinatário) o autor tenderá a estabelecer perduráveis e impressivos traços discursivos que prolonguem o efeito do narrado. Assim, mais do que estabelecer uma cumplicidade conformada, os textos de Manuel Tiago apelam à acção, à permanente vigilância para que a História, nos seus contornos mais sórdidos e cruéis, se não repita.
A determinação
A pedagogia da acção e da luta está ainda presente no conto Caminho Invulgar, no qual o autor descreve, com inusitada simplicidade de processos, a complexa teia de solidariedades, afectos e renúncias que faziam o quotidiano da vida clandestina e que conseguiram manter vivo, ao longo de décadas, o fulgor da esperança e a determinação da resistência. Mesmo no cerco e no silêncio vigiado vivido pelos protagonistas desses tempos de brasa existiam sempre, para além da coragem física e psíquica, pontes ténues que firmavam laços fundos com a vida. Caminho Invulgar é uma história que parte da abjecção mais absoluta - um pai que denuncia o próprio filho e que a PIDE cruelmente tortura - para nos falar da descoberta de um mundo outro feito de sacrifícios e privações, mas fraterno e aberto ao futuro, da aprendizagem da luta clandestina, mas também da iniciação, do primeiro beijo, da descoberta do amor. Manuel Tiago nunca separa a sua visão da luta e do trabalho partidário dos afectos mais fecundos, porque a acção partidária não teria sentido se não estivesse profundamente ligada à vida.
O terceiro conto de "Sala 3" é um policial bem urdido, escrito quase em linguagem cinematográfica, com períodos curtos, contendo todos os condimentos do género: um cadáver que aparece num pinhal, a investigação policial numa aldeia onde quase todos os seus membros serão, aparentemente, suspeitos porque todos eles têm motivos mais do que suficientes para matar o Vargas. Mas Manuel Tiago não nos conta a história pela história: vai mais longe e mais fundo. Traça o retrato da difícil vida dos pequenos proprietários rurais face à usura e à ganância dos latifundiários. Mais uma vez o autor, utilizando com desenvoltura os mecanismos de um género literário estimável, nos fala da opressão e da exploração capitalista no tempo do fascismo.
Pedagogia da intervenção
Em "Os Corrécios", para além do conto que lhe dá título e que trata também da repressão fascista, desta vez exercendo-se no seio da instituição militar, há um conto que me parece a vários títulos paradigmático da forma como Manuel Tiago entende e utiliza a criação literária: "Histórias Paralelas". Neste conto o autor aborda o quotidiano de uma comissão concelhia do Partido, as reuniões dos seus membros, as tarefas a desenvolver, as acções de massas e, claro, as clivagens que começam a estabelecer-se entre aqueles que entendem que a luta deve estar ligada aos problemas concretos das populações, e outros que entendem que o partido deveria pactuar com os poderes estabelecidos (no caso vertente, o presidente da câmara) e não afrontar os poderosos. Para além da literatura, este texto de Manuel Tiago inscreve-se no terreno mais vasto da intervenção política e ideológica. Neste conto (como de resto também acontece no texto "De Mãos Dadas") os padrões comportamentais dos comunistas, como fundadores de um novo humanismo e de uma nova moral, de uma atitude coerente e interventora sobre os mecanismos da história, estão claramente assinalados e definidos, mesmo quando neles transparece o pendor para a análise política mais profunda, que desce ao cerne de algumas questões centrais que hoje afectam o Partido. É essa capacidade de tornar visível e claro, de dar a conhecer e a compreender o que poderá parecer complexo e obscuro, essa pedagogia da intervenção, que torna a escrita de Manuel Tiago singular como objecto ficcional. Não descurando nunca os elementos fulcrais da criação literária mas impondo à narrativa uma outra função que é a de poder, como obra de arte que é, intervir sobre o real. A literatura como forma determinante de servir um projecto, uma ideia, uma forma superior de ser e entender o mundo.
Os discursos narrativos de "Sala 3" e "Os Corrécios", balançam entre o passado (a repressão, as prisões fascistas, a clandestinidade), e as questões do presente (a organização do Partido, a luta ideológica) . Manuel Tiago sabe que a memória é sempre elemento central da narração, como afirmou Oscar Tacca, mas sabe igualmente que a memória serve desígnios de acção e não de reacção, ou seja, não utiliza a memória em sentido passadista mas enquanto forma de transmissão de experiências que possam acautelar e servir o presente e o futuro.
Assim, estes dois títulos de Manuel Tiago narram os percursos difíceis, sinuosos, altruístas e abnegados que espelham as angústias colectivas de um tempo de estupor e absurdo. Textos que falam de medos, de sobressaltos e de perplexidades, mas também da sublimação da coragem, da fraternidade e do sonho. Uma escrita onde as palavras se erguem justas e certeiras para testemunhar combates, avanços e recuos de uma epopeia nossa e colectiva, inscrita na coragem, nos silêncios mordidos, na clausura e na esperança. Textos construídos com as palavras comuns, entendíveis mas lúcidas, palavras a abrir caminhos mais dignos para a vida, de tecer os contornos do porvir, a descerem aos alçapões das almas dissolutas, às traições rasteiras, mas também a dizer a festa, o riso, o amor, o companheirismo, as fugas e os reencontros: a plenitude da vida e do vivido. Uma escrita atenta ao seu tempo, despojada e sóbria, a urdir-se com os linimentos fecundos da memória, corajosa e sem complexos formais.
A afirmar-se necessária hoje e aqui.
O conceito de arte pela arte que os presencistas acenavam como arma de combate à literatura comprometida dos neo-realistas e que Robbe Grillet actualizou opondo a sua teoria do regresso romântico da inconsciência do acto criador, como refere Werner Krauss, ao engagement sartreano, não passou de um sofisma para tentar impedir que uma literatura virada para os problemas reais e para as lutas do povo, efectivamente se afirmasse. Julgo que o enquadramento teorizante do nouveau roman se mantém ainda hoje, adaptado às derivas do tempo, caucionando o aparecimento dos subprodutos literários que a pósmodernidade contribuiu para legitimar.
Alheia aos bastidores das tricas literárias caseiras, a obra de Manuel Tiago revela-se logo após a revolução de Abril de 74, com "Até Amanhã, Camaradas" e determina-se, desde logo, território pessoalíssimo e singular no panorama literário português dos anos 70, a fazer-se no dealbar do estruturalismo, de uma mal digerida abstractização a roçar as fraldas de um surrealismo serôdio, com algumas vozes centrais de uma 3a. geração neo-realista que a denúncia ficcional da guerra colonial tornava visível e actuante: Álvaro Guerra, Modesto Navarro, Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre, José Martins Garcia, José Manuel Mendes, João de Melo, etc., mas igualmente com algumas figuras tutelares da prosa e da poesia, igualmente do combate antifascista, como José Cardoso Pires, Carlos de Oliveira, Augusto Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira ou José Saramago, já com as crónicas e a poesia publicados e trazendo à ilharga "A Noite" e o "Manual de Pintura e Caligrafia".
Uma voz descomplexada
Manuel Tiago surge, assim, como uma voz descomplexada face às estéticas e às polémicas academizantes da moda, com uma escrita clara e despojada, de cariz vincadamente anti-burguês, política e partidariamente comprometida, afirmando-se livre e liberta dos constrangimentos que a censura impunha aos autores neorealistas, obrigando-os a um discurso circular, subterrâneo e codificado. Ou seja, Manuel Tiago diz transparente o que os primeiros neo-realistas eram forçados a dizer cifrado. Esta atitude de assunção livre do real - que podemos detectar, igualmente, no magnífico romance de José Casanova "O Caminho das Aves" - é, em literatura, do plano da modernidade. De resto, é nas premissas estéticas e filosóficas do neo-realismo que a melhor prosa de Manuel Tiago se inscreve e radica.
Temos assim, um discurso que não escamoteia o real, que não esconde as suas origens, que se assume como contributo no combate ao fascismo e em oposição frontal ao capitalismo rapace emergente, que as debilidades e os desvios do processo democrático permitiram domínio do sistema económico.
Os contos que constituem o volume de "Sala 3", são, tal como "Até Amanhã, Camaradas", narrativas da pré-revolução, como refere Manuel Gusmão. Neles Manuel Tiago traça o quadro negro do Portugal fascista e das condições quase sub-humanas em que o povo sobrevivia. O conto que dá título ao volume narra-nos a história de vários militantes comunistas presos no Aljube (o autor nunca refere
claramente o nome do presídio, embora nos forneça pistas, como o dos pombos que vêm ou do Rossio, ou das Ruínas do Convento do Carmo) e a acção decorre nos primeiros anos da 2.ª Guerra Mundial. A fuga do Aljube é-nos contada com minúcia, nos mais ínfimos pormenores, desde a preparação do golpe, passando pelas traições dos infiltrados, a luta travada dentro do cativeiro contra as condições de opressão extrema a que os presos estavam sujeitos, até aos truques que os prodígios da imaginação congeminavam para passar e receber mensagens. "Sala 3" é, no seu realismo depurado, apelando à razão mais do que pretendendo estabelecer um discurso propício à emotividade (embora um forte sentimento de revolta e impotente raiva ainda hoje nos assalte ao ler este texto), um conto exemplar.
Manuel Tiago conhece bem os seus interlocutores, sabe que quem o lê estará próximo das suas convicções e por essa determinante da criação literária (o destinatário) o autor tenderá a estabelecer perduráveis e impressivos traços discursivos que prolonguem o efeito do narrado. Assim, mais do que estabelecer uma cumplicidade conformada, os textos de Manuel Tiago apelam à acção, à permanente vigilância para que a História, nos seus contornos mais sórdidos e cruéis, se não repita.
A determinação
A pedagogia da acção e da luta está ainda presente no conto Caminho Invulgar, no qual o autor descreve, com inusitada simplicidade de processos, a complexa teia de solidariedades, afectos e renúncias que faziam o quotidiano da vida clandestina e que conseguiram manter vivo, ao longo de décadas, o fulgor da esperança e a determinação da resistência. Mesmo no cerco e no silêncio vigiado vivido pelos protagonistas desses tempos de brasa existiam sempre, para além da coragem física e psíquica, pontes ténues que firmavam laços fundos com a vida. Caminho Invulgar é uma história que parte da abjecção mais absoluta - um pai que denuncia o próprio filho e que a PIDE cruelmente tortura - para nos falar da descoberta de um mundo outro feito de sacrifícios e privações, mas fraterno e aberto ao futuro, da aprendizagem da luta clandestina, mas também da iniciação, do primeiro beijo, da descoberta do amor. Manuel Tiago nunca separa a sua visão da luta e do trabalho partidário dos afectos mais fecundos, porque a acção partidária não teria sentido se não estivesse profundamente ligada à vida.
O terceiro conto de "Sala 3" é um policial bem urdido, escrito quase em linguagem cinematográfica, com períodos curtos, contendo todos os condimentos do género: um cadáver que aparece num pinhal, a investigação policial numa aldeia onde quase todos os seus membros serão, aparentemente, suspeitos porque todos eles têm motivos mais do que suficientes para matar o Vargas. Mas Manuel Tiago não nos conta a história pela história: vai mais longe e mais fundo. Traça o retrato da difícil vida dos pequenos proprietários rurais face à usura e à ganância dos latifundiários. Mais uma vez o autor, utilizando com desenvoltura os mecanismos de um género literário estimável, nos fala da opressão e da exploração capitalista no tempo do fascismo.
Pedagogia da intervenção
Em "Os Corrécios", para além do conto que lhe dá título e que trata também da repressão fascista, desta vez exercendo-se no seio da instituição militar, há um conto que me parece a vários títulos paradigmático da forma como Manuel Tiago entende e utiliza a criação literária: "Histórias Paralelas". Neste conto o autor aborda o quotidiano de uma comissão concelhia do Partido, as reuniões dos seus membros, as tarefas a desenvolver, as acções de massas e, claro, as clivagens que começam a estabelecer-se entre aqueles que entendem que a luta deve estar ligada aos problemas concretos das populações, e outros que entendem que o partido deveria pactuar com os poderes estabelecidos (no caso vertente, o presidente da câmara) e não afrontar os poderosos. Para além da literatura, este texto de Manuel Tiago inscreve-se no terreno mais vasto da intervenção política e ideológica. Neste conto (como de resto também acontece no texto "De Mãos Dadas") os padrões comportamentais dos comunistas, como fundadores de um novo humanismo e de uma nova moral, de uma atitude coerente e interventora sobre os mecanismos da história, estão claramente assinalados e definidos, mesmo quando neles transparece o pendor para a análise política mais profunda, que desce ao cerne de algumas questões centrais que hoje afectam o Partido. É essa capacidade de tornar visível e claro, de dar a conhecer e a compreender o que poderá parecer complexo e obscuro, essa pedagogia da intervenção, que torna a escrita de Manuel Tiago singular como objecto ficcional. Não descurando nunca os elementos fulcrais da criação literária mas impondo à narrativa uma outra função que é a de poder, como obra de arte que é, intervir sobre o real. A literatura como forma determinante de servir um projecto, uma ideia, uma forma superior de ser e entender o mundo.
Os discursos narrativos de "Sala 3" e "Os Corrécios", balançam entre o passado (a repressão, as prisões fascistas, a clandestinidade), e as questões do presente (a organização do Partido, a luta ideológica) . Manuel Tiago sabe que a memória é sempre elemento central da narração, como afirmou Oscar Tacca, mas sabe igualmente que a memória serve desígnios de acção e não de reacção, ou seja, não utiliza a memória em sentido passadista mas enquanto forma de transmissão de experiências que possam acautelar e servir o presente e o futuro.
Assim, estes dois títulos de Manuel Tiago narram os percursos difíceis, sinuosos, altruístas e abnegados que espelham as angústias colectivas de um tempo de estupor e absurdo. Textos que falam de medos, de sobressaltos e de perplexidades, mas também da sublimação da coragem, da fraternidade e do sonho. Uma escrita onde as palavras se erguem justas e certeiras para testemunhar combates, avanços e recuos de uma epopeia nossa e colectiva, inscrita na coragem, nos silêncios mordidos, na clausura e na esperança. Textos construídos com as palavras comuns, entendíveis mas lúcidas, palavras a abrir caminhos mais dignos para a vida, de tecer os contornos do porvir, a descerem aos alçapões das almas dissolutas, às traições rasteiras, mas também a dizer a festa, o riso, o amor, o companheirismo, as fugas e os reencontros: a plenitude da vida e do vivido. Uma escrita atenta ao seu tempo, despojada e sóbria, a urdir-se com os linimentos fecundos da memória, corajosa e sem complexos formais.
A afirmar-se necessária hoje e aqui.